domingo, 28 de julho de 2013

DICIONÁRIO, UM INSTRUMENTO SUBVERSIVO

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Pegamos num jornal, seja diário ou semanário, generalista ou temático, nacional, local ou internacional; ou numa revista, mesmo as designadas “cor-de-rosa”; ligamos a rádio, a televisão, qualquer emissora, qualquer canal; entramos numa livraria; por todo o lado nos surgem três palavras cuja magia nos cativa, como se contivessem uma resposta miraculosa às nossas angústias, dúvidas, medos, trazidos pela profunda crise que vivemos: Produtividade, Inovação, Criatividade.

Constituirão elas, no entanto, de per si ou no seu conjunto, as respostas que ambicionamos para darmos corpo ao nosso desejo de um Futuro Digno?

Não o creio. Porquê? Porque Produtividade, Inovação, Criatividade são apenas factores (embora essenciais) da que, sim, conterá a verdadeira resposta que buscamos: Competitividade!

De facto, é esta palavra que, dizem-nos, aglutina em si todas as virtudes que nos farão sair da profunda crise em que estamos mergulhados, senão afundados.

E o que é a Competitividade? É tão só – e tanto! – a capacidade para competir, para participar numa competição. Sendo que Competição, diz o Dicionário, é “Concorrência a uma mesma pretensão por parte de duas ou mais pessoas ou grupos, com vista a igualar ou esp. a superar o outro; reivindicação simultânea do mesmo poder, etc.”.

Vamos então competir. Com o Outro, sejamos nós, seja o Outro, um indivíduo, um grupo, uma empresa, um país. Onde, então, o palco ou arena em que se desenrola essa competição?

Por tudo o que nos dizem os jornais, rádios, televisões, políticos, académicos, pensadores e, sobretudo, os “catedráticos de tudologia”, a crise é global, porque vivemos “globalizados”: os nossos vizinhos não são apenas “o sr. Carlos do 3º Esq.”, ou a “D. Maria do prédio em frente”, ou a “menina Gestrudes da rua de cima”; os chineses (mil e quinhentos milhões!), os indianos (mil e trezentos milhões!), os australianos, sul-africanos, americanos, esquimós, bosquimanos, iranianos, sauditas,…, são nossos vizinhos!

Que palco ou arena pode conter tantos competidores?

Apenas um, dizem-nos a uma só voz, os jornais, rádios, televisões, políticos, académicos, pensadores, e, claro, os “catedráticos de tudologia”: os “Mercados”! Porquê? Porque os “mercados” são o único palco que comporta a imensa pluralidade e a tremenda diversidade que nós somos, mesmo sendo vizinhos uns dos outros, todos de todos:

Mas, sabemos desde tempos imemoriais, uma competição tem que ter regras, critérios, normas, que permitam aos concorrentes darem o melhor da sua capacidade competitiva para, havendo um mesmo objectivo a alcançar, o melhor deles o alcance antes de todos os outros. Como conciliar esta necessidade definidora da competição – regras e critérios reconhecidos e partilhados por todos os concorrentes -, quando a nossa pluralidade e a nossa diversidade tendem para o infinito?

Tomando a palavra, os “mercados” proclamam, do alto da sua sabedoria (porventura seguindo a visão iluminada dos “catedráticos de tudologia”…): “Não Há Regras!”. Acrescentando, desde logo, e com manifesta intenção de clarificar o conceito: “Não Há Alternativas!”.

Quer isto dizer que a palavra-chave que acompanha a Competitividade no palco dos “mercados” é Desregulamentação!

O que diz o Dicionário desta palavra Desregulamentação? Diz que é “Eliminação das regras, das normas (esp. governamentais) para qualquer instituição ou corpo colectivo; eliminação das disposições governamentais que normatizem a execução de uma lei, de um decreto, etc.”.

É, portanto, uma Competição sem Regras!

Mas como podem, assim, os “mercados” existir, agir, exercer o seu múnus?

Afirmam os “mercados”, sapientemente: “Somos apátridas, porque somos filhos e pais da globalização. E somos amorais, porque sim!”.

De Apátrida dirá o Dicionário: “Que ou o que se encontra oficialmente sem pátria”. Será pertinente interpretar-se esta definição como correspondendo a alguém ou algo que não pertencendo a lugar nenhum, pertence a todos em simultâneo. E de Amoral dirá: “Que se mantém exterior ao julgamento ou qualificação moral”. E acrescentará, invocando a subjacente Amoralidade: ”Ausência de princípios morais”.

Definitivamente, a Competitividade no palco dos “Mercados” exerce-se através de uma Competição sem Regras e sem Princípios.

Numa competição deste tipo, o único critério que resta é o da Força. Mais ou menos “pura e dura”, mais ou menos “subtil e “soft””, este único critério aliena por completo as componentes da Competitividade apontadas acima - Produtividade, Inovação, Criatividade - , colocando o poder da decisão da Competição exclusivamente no mais forte.

Por outro lado, é este mesmo critério único que permite aos “mercados” explorar toda a sua surpreendente plasticidade para agir sem regras e sem princípios para alcançar os mais elevados “ganhos competitivos”: quando os resultados obtidos são positivos, é a amoralidade e a desregulamentação que prevalecem; mas se, eventualmente, os resultados e apresentam negativos, então reclamam-se ferozmente “patriotas” e “intransigentes defensores de regras duras” (como forma de imporem o retorno imediato à positividade dos resultados).

Os “mercados” dão, assim, o “salto” da amoralidade que os define (nas “vitórias”) para a imoralidade que assumidamente praticam (nas “derrotas”).

Recorrendo de novo ao Dicionário, vemos que diz de Imoral: “Contrário à moral, às regras de conduta vigentes numa dada época ou sociedade; que ou indivíduo que afronta ostensivamente as convenções e conveniências morais e sociais.”. E de Imoralidade diz: “Conduta ou comportamento que não se pauta pela moralidade; cinismo; dissolução.”.

Depois de duas semanas em que vimos a política e os seus principais protagonistas descerem todos os degraus da moral e da decência pública – afirmações irrevogáveis diariamente revogadas; dissimulações simuladas; imposições “democráticas” de um presumido poder único; provando que vivemos na era do “dependismo”, em que tudo depende de um preço de compra e venda, até as atitudes! – urge colocar a questão: o Povo, como Comunidade, faz parte, ou não, dos “mercados”? Afigura-se legítimo responder que, não fazendo parte, nada terá a ver com os problemas dos “mercados”, quaisquer que eles sejam; mas se fizerem parte, nada impedirá idêntica atitude amoral e igual prática imoral.

Ora, uma Comunidade, por mais plural e diversa que seja, organiza-se e regula-se por forma a que os cidadãos vizinhos que a ela pertençam, ou queiram pertencer, possam ter uma perspectiva de Futuro que lhes seja comum, em que todos se revejam e reconheçam na inquestionável Dignidade individual e colectiva, independentemente de quais sejam as diferenças contidas nessa plural diversidade.

Porém, pudemos constatar nestas duas últimas semanas que, quer o “presidente” da República, quer o governo, se submeteram aos “mercados”, integrando-se – e pretendendo integrar toda a Comunidade – numa competição sem regras e sem princípios, com a Força como único critério para avaliar atitudes, acções (ou omissões), e resultados.

É, pois, pertinente, colocar em confronto com esta situação – de clara ausência de Valores e de Princípios -, o juramento que os militares fazem (e com eles as Forças Armadas) de sacrifício da própria vida, sob e perante, exactamente, Valores e Princípios que constituem o cimento que une os cidadãos e sustenta a sua vontade desse Futuro comum. Porquê? Porque, como escreveu Eduardo Lourenço, “as Forças Armadas não são nem podem ser, numa perspectiva de normalidade política, fonte de Poder político. Mas igualmente, não são nem devem ser instrumento de um Poder que não incarne de maneira cabal, ou admita como tal, a vontade e o interesse nacional.”.

Releve-se, no entanto, que invocar o designado interesse nacional sem uma adequada e imprescindível clarificação do conceito, quando o País é o mais desigual da União Europeia, e quando “meia dúzia” de rapaces adeptos fundamentalistas dos “mercados” não cessam de “exportar” muitas dezenas de milhares de milhões de euros, será insultar, mais uma vez, um Povo inteiro.

E não é sequer suficiente para esconder que o que verdadeiramente está em causa, hoje e aqui: a destruição simultânea da Democracia e do Estado de Direito, e a sua substituição por algo sem Valores, sem Princípios, sem Regras, onde o único critério que prevalece é o da Força, um estado onde apenas o mais forte tem direito à Liberdade (Rainer W. Fassbinder).

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