domingo, 6 de dezembro de 2015

Do Golpe de Estado ao Estado de Golpe

golpe de estado

O sujeito político que ocupa o lugar do Presidente da República tem vindo a demonstrar, reiterada e claramente, o que o move na sua acção política: os seus interesses, e os interesses do grupo que escolheu como seu.

A escolha deste grupo ficou definida no seu discurso de vitória no dia da sua reeleição: os poderosos, e os mansos e obedientes.

Mas também nesse discurso foi claro na afirmação de que os seus interesses prevalecem sobre os demais: ao rejeitar o vencimento inerente ao cargo de Presidente da República, optando por ser remunerado pelas suas pensões, vincou, sem sofismas, que a representação política, cultural, social, de um Povo inteiro, consubstanciada no Presidente da República, era para si apenas “um custo” a suportar na defesa prioritária dos seus interesses.

A coerência, assim sustentada, na sua acção política levou-o a marcar eleições legislativas para 4 de Outubro, mesmo sabendo que esse acto afrontava directamente uma imposição legal da União Europeia, a da submissão do Orçamento do Estado à aprovação da Comissão Europeia em Outubro. Mais do que cumprir normas e tratados, importava “dar tempo ao seu povo” – o governo de Passos Coelho – para disfarçar 4 anos de governação contra a maioria do Povo, com acenos de que “os sacrifícios impostos valeram a pena”.

Assim, quer o atraso no cumprimento desta obrigação inscrita do Tratado Orçamental, quer as consequências que dele possam derivar, são da exclusiva responsabilidade deste sujeito político.

(O que acima exponho não significa, de modo algum, a defesa dessa aberração política, económica, social e humana que dá pelo nome de Tratado Orçamental!)

Porém, os resultados eleitorais não foram os que desejava. E não tardaram as ameaças contra quem se atrevia a colocar em risco os seus interesses e os interesses do “seu povo”. Acolitado por uma comunicação social manipulada e manipuladora, tudo fez para impor a sua solução governativa – a continuação do governo de Passos Coelho -, levando o país à eminência de um golpe de estado.

Mas se o golpe de estado não se concretizou (ainda…), o discurso que proferiu na tomada de posse do actual governo, carregado de ressentimento e despudoradamente ameaçador e chantagista, mais não fez do que instituir um estado de golpe: tudo o que o governo venha a decidir que ponha em caus os interesses por que tanto lutou, e luta (os seus e os do “seu povo”) será liminarmente rejeitado, conduzindo mesmo à demissão do governo, se necessário for.

É isto que é o estado de golpe: a prevalência, assumida e praticada sem hesitações, dos interesses sobre os Valores e os Princípios; a “legitimação” desses interesses através de “adequada semântica jurídica”, depois de as palavras terem sido “devidamente torturadas” por forma a que o seu significado, já “expurgado” de quaisquer Valores e Princípios, “docilmente” se submeta aos interesses; e se, mesmo assim, houver algo que em risco esses interesses sem que as “leis à medida feitas” os possam defender, “não há alternativa” senão usar a Força para “impor a ordem”.

Zelar, “custe o que custar”, pelos seus interesses, e os interesses do “seu povo”, é o único propósito deste sujeito político.

No entanto, esta é apenas a expressão caseira dos interesses, e dos seus conflitos, que definem o “estado a que chegámos” no mundo globalizado.

Sem Valores nem Princípios, os conflitos de interesses buscam na Força a sua resolução, seja pelo confronto armado directo, seja pelo terrorismo nacional e transnacional. A todo o momento chegam-nos imagens chocantes, relatos de violências inimagináveis, que, ao mesmo tempo que nos indignam e apavoram, nos conduzem à identificação irracional, e manipulada, de um inimigo que devemos expulsar, torturar, segregar, eliminar, aniquilar – em nome de interesses. Interesses que não são nossos, que desconhecemos, que não identificamos, que não conseguimos subordinar aos Valores e Princípios que sustentam as nossas opções.

O domínio dos interesses sobre os Valores e Princípios atingirá a sua expressão máxima se o Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) e o Trade in Services Agreement (TiSA) forem concluídos, aprovados e levados à prática.

O secretismo com que ambos os tratados estão a ser negociados é de tal ordem torna verosímil a notícia de que se alguém (p. ex., um deputado da Assembleia da República) que queira conhecer os seus conteúdos e consequências para o país terá que solicitar autorização à embaixada dos Estados Unidos da América e, na eventualidade de lhe ser concedida, será “devidamente acompanhado” e “adequadamente revistado” para que não tenha a veleidade de tomar quaisquer tipos de notas.

A ser verdade, será lícito perguntar: 1) Porquê a embaixada dos EUA e não o Governo de Portugal?; 2) O Governo de Portugal conhece o conteúdo destes tratados, determinantes que se apresentam para o Futuro do país?; 3) Se sim, não é gravíssimo que permita que seja uma embaixada de um outro país a conceder autorização para “uma visita rigorosamente guiada” àqueles documentos?; 4) Se não, não é ainda muito mais gravíssimo (perdoe-se o mau português)?; 5) Sobretudo, será ou não uma definitiva prova de que Portugal já não é um país soberano e independente?

No entanto, se dos seus conteúdos muito pouco se conhece, sabe-se que, em paralelo, instituir-se-á o Investor-State Dispute Settlement (ISDS), através do qual os conflitos que possam surgir entre um Estado e uma multinacional instalada no seu território serão dirimidos, não em Tribunais (nacionais ou internacionais), não sob leis conhecidas e ratificadas pelos intervenientes, mas sim em privados escritórios de advogados “ditos especializados” na resolução desses conflitos.

Os resultados conhecidos deste tipo de resolução de conflitos – desde a América Latina, ao Egipto, à Alemanha (apenas como exemplos) -, são, por si só, prova bastante de que Valores, Princípios, Cidadania, Pessoas, Direitos Humanos, são, hoje, mera retórica poética. Somente os interesses são relevantes, assumindo um lugar, uma acção e um poder imperiais. E as leis, quando existem, são interpretadas (elaboradas) em obediência a um único postulado: “O Direito do mais Forte à Liberdade”.

Conduzidas que foram as Comunidades Nacionais à situação de estado de golpe acima descrita, ficaram escancaradas as portas a um golpe de estado globalizado: os interesses das multinacionais prevalecerão sobre todas e quaisquer perspectivas de Futuro em que as populações se reconheçam, individual e colectivamente. A luta milenar que a Humanidade vem travando pelo reconhecimento, efectivo e praticado, da Igualdade dos Diferentes será (está a ser!) brutalmente substituída pela violência (cada vez maior) das Desigualdades entre “Iguais”: os “Iguais” transformados em meros objectos, em simples instrumentos, em “coisas”, para sustentarem a inumana ganância dos privilegiados accionistas das multinacionais, entendendo-se por accionista não apenas o possuidor de acções das empresas, mas o decisor e praticante das acções de domínio, exploração, segregação, discriminação, exclusão, aniquilação, de quem ouse sequer expressar tímidos protestos contra a crescente desigualdade política, social, cultural, humana.

De que outro modo podemos interpretar a condenação (por “tribunal privado”) do Egipto porque, ao aumentar o salário mínimo nacional, “pôs em causa as perspectivas de lucro” de algumas multinacionais instaladas no seu território? Ou a condenação da Alemanha quando, por ter cancelado o seu programa de construção de centrais nucleares, se viu acusada (em “tribunal privado”) de anular as “perspectivas de lucro” de outras multinacionais?

E não nos podemos esquecer que este “edifício jurídico privado” se sustenta, para além de leis “semanticamente purificadas” de Valores e Princípios Humanos, no poder de coacção detido pelas multinacionais, por três vias: sanções (quebra de fornecimento de bens e serviços); “exércitos privados” em serviço directo; acção de Empresas Militares Privadas, de que as multinacionais são poderosas “accionistas”.

Um autêntico golpe de estado globalizado que colocará (definitivamente? até quando?) o homo sapiens em completa submissão ao homo economicus (especialmente à sua fronteira terrorista, a componente financeira, deixando-nos órfãos de Afectos, relegados da Utopia, deserdados da Humanidade.

É este mundo inumano que aceitamos deixar como legado aos nossos Filhos?

Aceitamo-nos acríticos, acéfalos, autómatos, anómalos, meros cordeiros mansos e obedientes de rebanhos apascentados pelos Estados?

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