domingo, 23 de abril de 2017

Carta aos Presidentes da República e da Assembleia da República

                   Exmo Senhor
                   Presidente da República
                   Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa

                    Exmo Senhor
                    Presidente da Assembleia da República
                    Dr. Eduardo Ferro Rodrigues

           Excelências

  Permitam-me que me apresente: António Joaquim Almeida de Moura, Capitão-de-Mar-e-Guerra, na situação de Reforma.
  Peço ainda a Vossas Excelências que relevem a ousadia de Vos escrever, mas tenho plena convicção de que, ao fazê-lo, estarei a exercer um direito e, ao mesmo tempo, a cumprir um dever, constitucionalmente previstos no Artigo 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP) – “… visando… o aprofundamento da democracia participativa”.
  O motivo próximo que me leva a esta acção é o de que estará agendado para o dia 16 de Junho de 2016, na Assembleia da República, o debate sobre vários tratados de carácter económico, político e social, a celebrar entre a União Europeia e os Estados Unidos da América – o Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) e o Trade in Services Agreement (TiSA) – e entre a União Europeia e o Canadá – o Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA).
  Dizem-nos os órgãos de comunicação social, nacionais e internacionais, que tais tratados têm como objecto fundamental o estabelecimento de regras de comércio livre que satisfaçam ambos os lados em diálogo. No entanto, e embora possa ser admissível, como “teoria de negociação”, que “o segredo é a alma do negócio”, é escasso e muitas vezes contraditório, o conhecimento efectivo e concreto do que esses tratados abrangem, como abrangem, e quais as consequências (positivas – ganhos; negativas – cedências) que comportam para cada um dos lados.
  Apenas como exemplos destas insuficiências e contradições:
  - O acesso à documentação existente por parte dos Eurodeputados só   acontece após “adequada autorização”, sem possibilidade de tomada de quaisquer notas, e sujeito a permanente e local vigilância por “pessoa devidamente credenciada”.
  - Em recente entrevista a um diário português (“Público”), o Sr. Ignacio Garcia Bercero, negociador-chefe da Comissão Europeia para a Parceria Transatlântica de Comércio e de Investimento (o TTIP), afirmou que “a negociação está a ser feita de forma transparente, mostrando que a Comissão está a defender com muita força os interesses europeus e os níveis de protecção europeus”.
  - No intróito da mesma entrevista lê-se que “Representar os interesses de 28 países não é coisa fácil. Mas é uma inevitabilidade, dado que a política de comércio externa é uma só e da competência exclusiva da União Europeia.
  Por outro lado, a forma como vem sendo perspectivada a resolução de eventuais conflitos entre os Estados e os Investidores – os actores protagonistas nesses tratados -, e que é designado por Investors-State Dispute Settlement (ISDS), coloca no âmbito de “tribunais” privados, isto é, escritórios privados de advogados, a solução, vinculativa, desses conflitos.
  Conquanto nada se saiba no que respeita ao ISDS incluído no TTIP e no TiSA, as manifestações de protesto contra estes tratados, que têm acontecido por toda a União Europeia, terão contribuído para que, no que ao CETA concerne, esses conflitos venham a ser dirimidos por um tribunal especial, em cuja composição participarão juristas escolhidos por cada um dos lados em confronto e juristas “independentes”. Porém, importará salientar que, do lado da União Europeia, a função que será atribuída aos “seus” juristas escolhidos será a da defesa dos interesses europeus.
  Como poderemos nós, portugueses, entender estes “interesses europeus”? Não foi do “interesse europeu”, mas não nosso, a destruição da nossa frota pesqueira? Da nossa agricultura? Da nossa indústria? Não foi, é, do “interesse europeu”, mas não nosso, a violenta austeridade em que estamos mergulhados – com centenas de milhar de emigrantes, um milhão de desempregados, a precariedade como “regra” laboral, dezenas de milhar de crianças com fome?
  De facto, esta dúvida pesada – há, haverá, conciliação possível entre os interesses nacionais, nossos, e os “interesses europeus”? – não foi brutalmente esclarecida pelo presidente da Comissão Europeia, Sr. Jean-Claude Juncker, ao afirmar que “a França é a França” quando estava em causa o não cumprimento dos tratados europeus por esse país?
  De tal modo este esclarecimento é brutal que o “informal” presidente do informal Eurogrupo não se coibiu de verberar essa afirmação, fazendo-o em termos contundentes, pois “descredibilizava por completo a Comissão Europeia”! Mas, na verdade, se esta contundência é, explicitamente, uma condenação das palavras do Sr. Juncker, não será também legítimo interpretá-la como implicitamente concordante – apenas não deveria ter sido formulada?
  Assim, Senhor Presidente da República, Senhor Presidente da Assembleia da República, a forma como estes tratados vêm sendo negociados, e a forma como está a ser perspectivada a resolução de conflitos entre cada Estado e os Investidores, afigura-se claramente como  “um jogo de forças” (“O Direito do Mais Forte à Liberdade”, diria Fassbender), em que os interesses nacionais, os nossos interesses como Nação soberana e independente, são subalternizados perante os “interesses europeus”. Mais, os interesses nacionais serão sujeitos, em caso de conflito com os Investidores, à subordinação a interesses privados.
  Isto é, Portugal deixará de ser Soberano e Independente.
  Mas o debate a acontecer a 16 de Junho tem, também, uma relevantíssima componente interna: quem são os Deputados que vão debater um assunto de tal modo transcendente que podemos afirmar que irão, de facto, posicionar-se a favor ou contra a soberania e a independência nacionais?
  Lendo a Constituição da República Portuguesa, que V. Excelência, Senhor Presidente da República, ao tomar posse perante a Assembleia da República, perante V. Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República, jurou “defender, cumprir e fazer cumprir”, encontramos as pistas para respondermos a essa pergunta:
  - Art. 1º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular…”;
  Art. 3º-1: “A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.”;
  Art. 7º: “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre Estados…”;
  Art. 108º: “O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”;
  Art. 120º: “O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas.”;
  Art.147º: “A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses.”;
  Art. 276º-1: “A defesa da Pátria é um direito e um dever fundamental de todos os portugueses.”.
  Bem sei, Senhor Presidente da República, Senhor Presidente da Assembleia da República, que “o aprofundamento da democracia participativa” é uma construção lenta (tantas vezes a julgamos “lenta demais”!) e difícil.
  Sei também que muitos seguem o que Clement Attlee afirmou, em 1957: “A democracia significa um governo pela discussão, mas só é eficaz se se conseguir impedir que as pessoas falem”.
  Sei, ainda, que “Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções”. (CRP, Art. 157º - Imunidades).
  Mas o “contraponto” daquela “construção lenta e difícil” não é nem a sua negação (impedindo as pessoas de discutir e de escolher o que desejam como seu Futuro, individual e colectivo, e proclamando que “Não Há Alternativa”, o que é, inquestionavelmente, a imposição de uma escolha), nem interpretar imunidades como irresponsabilidades.
  Estará nesta confusão, intencional ou inconsciente, uma causa concreta da crescente desconfiança, até azedume, com que os políticos são considerados pelos cidadãos deste país, como uma recente sondagem mais uma vez nos mostrou.
  Creio que é altura de os Deputados entenderem, de uma vez por todas, que a democracia representativa não os faz, de forma nenhuma, substitutos do povo. A democracia, mesmo a representativa, é o governo pelo povo, para o povo, e com o povo, pois é nele que reside o poder político, como explicitamente consagra a nossa Constituição.
  É para a assunção desse entendimento, e consequente prática política, que o debate de 16 de Junho sobre aqueles tratados constitui uma óptima oportunidade para que a Assembleia da República, como instituição, e os Deputados, como representantes (e não substitutos) do povo, reganhem a confiança de todos nós. Porquê? Porque estão em causa a soberania e a independência nacionais.
  Do debate surgirão certamente atitudes, opiniões, dúvidas, contradições. Se, no final do debate, cada um dos Deputados, individualmente, expressar a sua concordância ou discordância com os tratados em causa (e especialmente com o sistema de resolução de conflitos – ISDS), todos saíremos mais fortes e mais capazes de enfrentar, individual e colectivamente, os desafios que cada uma das escolhas comporta.
  Claro que esta opção (de Sim ou Não, de Concordância ou Discordância) obriga a assumir que:
  - Invocar a disciplina de voto não diminui, minimamente, a responsabilidade de quem a tal se sujeitar;
  - A abstenção por “insuficiência de informação” não é aceitável: revela que não foi procurada a informação necessária, ou que “se delega em alguém para pensar por si”;
  - A abstenção por “ausência de informação” também não é aceitável: revela uma atitude do tipo (com perdão pelo dito popular) “não sei, não quero saber, tenho raiva a quem sabe”;
  - A abstenção porque “tudo isto nos ultrapassa”, “é inevitável”, “não há alternativa” é inaceitável: revela total ausência de capacidade crítica;
  - A abstenção porque se consideram semelhantes as opções de concordância e discordância não é aceitável: revela uma atitude displicente do tipo “tanto faz”.
  Estas quatro hipóteses de “fundamentação” da abstenção constituirão razão substantiva para a exclusão da Assembleia da República de quem as tome: são irrelevantes, insultuosos até, para quem neles deposita a sua representação.
  Por último, Senhor Presidente da Assembleia da República, se na votação no final do debate for concluído que Portugal não quer, ou não tem condições para rejeitar aqueles tratados, no que tal significa de perda real de soberania e de independência nacionais, será crucial que a Assembleia da República leve a S. Excelência o Senhor Presidente da República a imprescindível alteração à definição do cargo de Presidente da República como “garante da independência nacional” (Art. 120º), bem como a imperiosa necessidade de alterar a fórmula do Juramento de Bandeira dos militares das Forças Armadas: perante quem, por quem, porquê, para quê, os militares passarão a jurar “o sacrifício da própria vida”?
Com os meus cumprimentos


P.S.: Porque há pessoas que, como cidadão e como militar, me têm dado provas de respeito, a que devo corresponder; porque há pessoas que me privilegiam com a sua Amizade, que me é crucial merecer; porque a democracia participativa não é só de alguns; dar-lhes-ei conhecimento desta carta, bem como aos grupos parlamentares dos partidos representados na AR, às Associações Militares e aos Chefes Militares.

NOTA: Esta carta mereceu resposta do Sr. Presidente da República, através do Chefe da Casa Civil, em 30/06/16 – “Agradeço os seus comentários e sugestões, que Sua Excelência o Presidente da República não deixará de ter na devida conta.”; do Sr. Presidente da Assembleia da República, Através da sua Chefe de Gabinete, que informou ter remetido a carta para todos os Grupos Parlamentares, e remetendo cópia do Diário da Assembleia da República de 17 de Junho de 2016, que transcreve o debate havido na AR a 16 de Junho de 2016; o CDS/PP, através do seu líder parlamentar, enviou os seu comentários, bem como as intervenções dos seus Deputados naquela sessão da AR; o PCP enviou os seus comentários e as intervenções dos seus Deputados; o PS informou que partilhava as mesmas preocupações; o Bloco de Esquerda e o Partido Os Verdes acusaram a recepção; as Associações Militares, a Associação Conquistas da Revolução e a Associação 25 de Abril, divulgaram a carta, tendo a ANS publicado no seu Jornal “O Sargento”, nº 92; O PSD e as Chefias Militares não disseram rigorosamente nada.